Ser prisioneiro...
Há uns dias estava à espera que me atendessem num sítio qualquer e peguei numa revista para passar o tempo e sem esperar ao ler uma entrevista deparei-me com a seguinte frase:
"(...) o meu pai e a minha mãe abriram guerra entre eles e só fizeram três prisioneiros - os filhos." (autor desconhecido)
Esta frase define bem a minha vida. Durante o tempo em que os meus pais viveram juntos ou depois quando se separaram. E isso é fácil explicar, não sei se fácil de imaginar.
Os meus pais são duas pessoas bem-sucedidas profissionalmente. Começaram do zero. Sem ajuda de ninguém e cada um construiu a sua própria empresa. Ambos tinham cerca de 20 anos quando se tornaram "patrões deles próprios".
Isto demonstra a forte personalidade dos meus pais. Mas também revela que desde os 20 anos os meus pais viveram para o trabalho. Era isso que lhes dava adrenalina. E queriam mais e mais.
Só que esqueciam-se que o querer mais e mais no trabalho, levava a que alguma coisa ficasse para trás. E neste caso, era a família que ficava esquecida.
O trabalho era presença constante à mesa, os telemóveis nunca eram desligados nas férias e as chamadas não paravam, os fins-de-semana de trabalho eram regulares, logo o convívio familiar era qualquer coisa de muito escasso.
Os meus pais viviam para o trabalho. E, apesar de terem profissões diferentes, ainda que nunca o tivessem admitido em voz alta, era notório que havia competição entre eles. Quem conseguia chegar mais longe, quem tinha mais sucesso, quem ganhava mais.
E essa competição prejudicava a vida familiar, porque era como se houvesse um elefante em casa, que todos viam, mas ninguém falava. E ninguém queria assumir que havia problemas que tinham de ser resolvidos. E afogavam-se no trabalho. Viviam para o trabalho, esquecendo-se muitas vezes que havia duas crianças em casa à espera.
E essas duas crianças viviam ansiosas por momentos de diversão, de passeios, de atenção, de brincadeiras, no fundo, de terem os pais focados nelas.
Mas isso raramente acontecia.
Por exemplo, uma das coisas que acontecia muito era ao domingo prepararmo-nos para irmos dar um passeio, entrarmos no carro, começarmos a viagem e alguns minutos depois os meus pais começavam a discutir e não havia passeio para ninguém. Voltávamos para casa, a discussão lá continuava e os filhos assistiam e pronto, cada um para seu lado e domingo em família estragado.
E quem é que saía prejudicado? Os filhos. Sempre.
Em quem é que pensavam os pais? Neles próprios. Não nos filhos.
Os filhos não eram protegidos naqueles confrontos. Assistiam desprotegidos a insultos, gritos, murros (na mesa, ou na parede, ou onde quer que fosse). Ficavam com as expectativas de um domingo "bem passado" frustradas, porque o foco não era o bem-estar deles.
E este exemplo de domingo equivale para as férias, para os dias de semana, para...tudo. As discussões eram uma constante. Estar em casa era um terror.
Ora, os meus pais refugiavam-se no trabalho para esquecer ou ignorar os problemas da sua vida pessoal.
E as crianças? Como lidam com isso?
Na verdade, nós quando nascemos não vimos preparados para encontrar um ambiente agressivo e opressivo. E também não temos trabalho para nos refugiarmos. Até irmos para a escola só conhecemos um ambiente: o de casa.
Enquanto crianças nada podemos fazer.
Depois com o tempo, podemo-nos focar no estudo, em actividades extra-curriculares, em procurar fora de casa um ambiente mais saudável. E passar o menos tempo possível em casa.
Isto tornou-se a minha solução. Sair de casa cedo e chegar tarde. Questionar como estava o humor de quem provocava as discussões antes de entrar em casa. Querer estar sempre ocupada para também eu não ter que lidar com o elefante que vivia lá em casa.
Mas isto não é vida. A escolha de um casamento entre duas pessoas que não se davam bem não é dos filhos. Não foi minha.
A escolha de manter um casamento infeliz não é dos filhos. É de dois adultos que foram egoístas e esqueceram-se que trouxeram ao mundo dois seres humanos que mereciam mais. Muito mais.
E por isso, sim. A guerra era dos meus pais, a prisioneira era eu. E talvez ainda seja. E talvez vá ser sempre.
O passado persegue-nos, pode aprender-se a viver com ele, a saber lidar com ele. Só que ele está enraizado em nós. É parte de nós. É quem nós somos.
Logo, não seremos prisioneiros para sempre de uma guerra que não é, nem nunca foi, nossa?