Havia uma pessoa que andava perdida. Chamemo-la de Grey.
Grey sentia-se perdido e sozinho.
Olhava à sua volta e sentia que fosse para onde fosse, desse por onde desse, não saía do lugar.
Sentia-se tão perdido que a única coisa que via à sua volta eram pedras e areia. Não via mais nada. Nem o céu azul, nem o sol, ou até mesmo a lua e as estrelas.
Resignado, Grey deitou-se no cimo de uma pedra, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.
Até que um dia, sem saber bem de onde, sentiu a presença de alguém e perguntou:
- És o sábio de que estou à espera?
(silêncio)
Não ouvindo resposta, Grey continuou..
- Se não fores o sábio de quem espero, podes-te ir embora. Não quero mais ninguém perto de mim, a não ser o sábio de quem espero.
Ouviu um suspiro e a resposta surgiu:
- Não, não sou o sábio de quem falas. Mas posso ajudar-te a encontrar o caminho até ele.
- Claro, claro. - O tom irónico de Grey era a sua maior arma - Como se eu precisasse da ajuda de alguém. E logo tua...nem faço ideia de quem és. - E em voz baixinha continuou: - não sei quem és, nem quero saber.
Do outro lado, outro suspiro:
- Acho que vives enganado com aquilo que precisas ou não. Mas tudo bem, se não precisas de mim, continua aí sozinho, perdido ou a olhar para o nada, se é assim que achas que vais encontrar o sábio. Tu lá sabes!
E Grey, se não precisas de mim, eu vou-me embora. Boa sorte nessa tua busca! Ah, espera...e acredita, que me conheces bem melhor do que aquilo que pensas.
Não reagiu. Como não reagia a nada que lhe era desconhecido. E quando aquela presença se foi embora, ele deitou-se a olhar para o nada, mais uma vez. E aguardou.
Aguardou tanto tempo que já se sentia mais pedra do que pessoa.
Só que sem saber bem porquê, nem quando, viu a imagem de uma casa. De uma simples casa. E inexplicavelmente sentiu que tinha que procurar aquela casa. Sentiu uma vontade enorme de sair dali e ir em busca daquele lugar que lhe dizia alguma coisa.
Tinha apenas que descobrir o quê, talvez fosse o sábio, quem sabe. Apenas sabia que tinha que ir. Que ali, onde estava, já não podia ficar.
Grey pôs-se em pé e procurou a saída. Viu uma porta. A saída que há tanto tempo procurava e que nunca lhe tinha aparecido.
Ah! Afinal havia esperança!
Passou por aquela porta e viu, pela primeira vez em muito tempo, o céu azul e o sol. Ah, as nuvens. E sorriu, como há muito não sorria.
Começou a seguir caminho, ainda que não soubesse para onde havia de ir, sentia que tinha de ir para algum lado. E foi andando. Andando.
Conseguiu finalmente sair do deserto e viu água. Um rio. E aí, começou a sentir fome.
E agora? O que podia comer? Quando estava na pedra, nem fome sentia. O que fazer agora?
Olhou ao seu redor. Tentou encontrar alguém que o pudesse ajudar. E nada. Só tinha um rio à sua frente. Sentou-se. Desanimou outra vez.
Já não estava no deserto, agora tinha um rio. Mas voltou a sentir-se perdido. Outra vez.
E deitou-se. E sentou-se. E olhou para o céu como que a pedir ajuda. E de repente, sentiu novamente aquela presença e perguntou:
- És o sábio de quem estou à procura?
Um primeiro suspiro.
- Já te respondi que não, mas posso levar-te a ele.
- E eu já te disse que não preciso de ti para nada. Aliás, agora nem é bem o sábio que quero. Tenho fome. E aqui não há nada.
- Se não precisas de mim para nada, então vou-me embora. Desenrasca-te para aí sozinho.
- Não, espera! Sabes ao menos onde posso encontrar algo para comer?
Mais um suspiro...
- (riso irónico) ... para quem não precisava de mim, estás a pedir-me que te diga onde comer? Afinal sempre precisamos de alguém na nossa vida.
- Pronto, pronto. Se não queres dizer, não digas. Hei-de encontrar alguma coisa. Nunca precisei de ninguém para nada, também não há-de ser agora. - Respondeu Grey com ar ofendido.
O suspiro tornou-se mais forte.
- Não te posso dizer onde comeres, apenas te posso dizer para esticares o braço e pegares nessa cana de pesca que está mesmo ao teu lado.
- Cana de pesca? Para que raio preciso eu de uma cana de pesca? - riu-se! - Ou achas que me alimento com isto?
- Não te alimentas com isso, mas podes obter alimento com isso. Basta esforçares-te.
- Esforçar-me? Se consegues fazer aparecer aqui uma cana de pesca, também consegues fazer aparecer um peixe aqui. Era bem mais rápido, não? - começava a ficar farto daquela conversa. E a fome era cada vez maior.
- Bem mais rápido era, tens razão. Mas isso não era ensinar-te que para alcançares aquilo que pretendes, o tal sábio de que tanto falas, precisas de o fazer sozinho. Eu posso dar-te os instrumentos, a ti cabe-te aprender a usá-los.
Suspirou mais uma vez e desapareceu.
Grey ficou sozinho mais uma vez. Agora com uma cana de pesca que não sabia muito bem o que podia fazer com aquilo.
Tinha fome. Muita fome. Cada vez mais fome.
Desesperado, pegou na cana, sentou-se à beira do rio e decidiu lançá-la.
Qual não foi o seu espanto quando sentiu a cana pesada e a mexer-se. E lutou contra isso. Puxou com a força que lhe restava e viu um peixe. Alimento. Aquilo era puro alimento. E sorriu, já podia matar a fome.
Voltou a ver aquela imagem. Aquela casa e decidiu continuar caminho.
Caminhou e caminhou. Sem fim. Depois do rio, começou a ver árvores e a ouvir pássaros. Encontrou animais. E enquanto caminhava ia encontrando algo novo. Mas a principal novidade era dentro dele. Já não se sentia tão perdido, já não se sentia tão sozinho, ainda que continuasse sem saber como encontrar aquela casa.
Um dia, já cansado, decidiu parar e encostou-se a uma árvore. E sentiu-a a suspirar.
Assustou-se. Reconhecia aquele suspiro.
E perguntou, mais uma vez:
- És o sábio que procuro?
O suspiro...
- Já te disse que não, mas posso levar-te a ele. Queres?
- Como posso eu saber que posso confiar em ti?
Um suspiro mais duradouro...
- Não sabes. Isso não se sabe, sente-se. E eu já te tirei a fome, não já? Podia ter-te deixado junto ao rio a morrer à fome.
- Ahahaha! Já me tiraste a fome? Essa deve ser para rir. Eu é que pesquei o peixe.
- Tens razão. - respondeu o suspiro. - Mas se não te tivesse dado a cana, não terias pescado o peixe e terias morrido à fome.
- Claro, podias era ter-me dado logo o peixe, não achas? - aquela conversa cansava-o.
Um suspiro ainda mais longo..
- Se te tivesse dado o peixe, não tinhas sentido o valor do esforço. Não tinhas sabido que eras capaz de pescar o peixe. Essa é a minha função.
- A tua função? Pois...acho apenas que gostas de me dificultar a vida.
- Enganas-te. Apenas te demonstro o quanto a vida pode ser fácil, basta apenas saber como viver a vida. Tu sabes?
Irritou-se! - Mas o que sabes tu sobre mim? Não te conheço e só me apareces para conversas irritantes. Não preciso de ti. Podes ir-te embora. Eu hei-de encontrar o sábio sozinho. Nunca precisei de ninguém.
Suspirou e foi embora. Não sem antes, deixar junto dele um tabuleiro de xadrez.
Grey olhou para aquilo e suspirou. Agora o suspiro vinha dele. Não entendia porque é que aquele tabuleiro ali estava. Nunca tinha jogado aquilo. Aliás, nem sabia como se jogava. E ainda que soubesse, estava sozinho. Não podia jogar sozinho.
Riu-se. Aquela presença que de vez em quando sentia tinha umas ideias muito estranhas. Primeiro a cana e a história de que ele é que tinha que pescar o peixe. E agora um tabuleiro de xadrez?
Estava cansado. E decidiu fechar os olhos e dormir uma sesta. E a casa voltou aparecer. Agora mais perto. Não tão perto como gostaria. Despertou. Tinha que continuar o caminho. Tinha que encontrar aquela casa.
Levantou-se e preparou-se para continuar o caminho. Só que algo o impedia de avançar e Grey não entendia o quê.
Tentou dar um passo. E manteve-se no mesmo sítio. Tentou saltar. E manteve-se no mesmo sítio. Decidiu rastejar, mas sem sucesso.
Ouviu o suspiro. E esperou. Desta vez decidiu não falar.
O suspiro falou primeiro:
- Onde pensas tu que vais?
- Vou em busca do sábio. Não é que tenhas alguma coisa a ver com isso. - respondeu com ar irónico.
- Ah, o sábio. E como pensas chegar até ele?
- Que te interessa isso? Dizes que me queres ajudar, mas primeiro dás-me uma cana quando te digo ter fome. E depois deixaste aqui um tabuleiro de xadrez quando sabias que aqui estava sozinho.
Suspirou longo...
- Ah, a cana e o tabuleiro. Porque resmungas tanto em vez de me ouvires? Eu disse-te porque te dei a cana. Talvez me devesses perguntar porque te deixei o tabuleiro.
- Como se isso me interessasse! Apenas quero sair daqui e seguir o meu caminho.
- Pois...não te interessa. - Que pessoa tão teimosa. - Olha, quer oiças, quer não oiças, vou-te dizer: não conseguirás sair daqui, enquanto não perceberes o significado da cana de pesca e do tabuleiro de xadrez. Quando perceberes, talvez o teu caminho até ao sábio esteja mais perto.
- Já percebi, já percebi. - estava a começar a ficar zangado. - A cana de pesca serve para eu não passar fome. E o tabuleiro de xadrez? Para que preciso eu disso se estou aqui sozinho.
Suspirou, agora com mais calma, sentia que estava a conseguir alcançar o pretendido.
- Eu explico-te. Não é para jogar. O tabuleiro é uma metáfora. Tu viveste sozinho durante muito tempo. Negaste a minha ajuda quanto te a quis dar. Aceitaste a minha ajuda porque tinhas fome. Mas zangaste-te quando não te facilitei a vida.
- Continuo sem perceber para que preciso de um tabuleiro de xadrez. - Interrompeu Grey.
- Tens de ter calma. E ouvir sem essa raiva que tens dentro de ti. Só assim poderás entender o que te tenho para dizer.
- Ok, ok. Mas despacha-te, que tenho que encontrar o sábio.
- Grey, senta-te e ouve-me.
Sentou-se, ainda que contrariado. E sem saber porquê, focou o seu olhar no tabuleiro de xadrez.
- Durante muito tempo sentiste-te sozinho e perdido. E resignaste-te a isso. Um dia sentiste dentro de ti que devias procurar o caminho e encontraste a saída.
- Sim, sim. Até parece que tiveste comigo o tempo todo para saberes o que estás para aí a dizer...
Ignorou e continuou.
- Ao saíres do deserto em que te encontravas, descobriste que havia mais coisas do que pedras. E sentiste algo que não tinhas sentido antes: fome. Quando sentiste isso, ficaste sem saber o que fazer. E eu ajudei-te.
Não, não te podia dar o peixe, seria fácil demais. E a vida não é fácil. Apenas te demonstrei isso.
Quando deixaste de sentir fome, abriste-te a mais conhecimento. Porque uma parte de ti tinha sido desbloqueada. Tinhas aprendido que eras capaz de sobreviver. Sabias como matar a fome. Davas valor ao alimento. Davas valor à vida.
Não era suficiente. E seguiste em busca do sábio, o tal sábio. Sem o encontrares.
Sabes porquê? Porque continuas sem saber o que realmente procuras. Continuas a achar que te devo facilitar a vida. Mas não, Grey.
E aí entra o tabuleiro de xadrez. A vida é um jogo de xadrez. Ao longo do tempo vais encontrar pessoas e coisas que te vão dificultar a vida e tu tens que saber como te mexer no jogo (da vida) para sobreviveres. Às vezes precisarás de ajuda para te moveres, para te protegeres. Outras conseguirás sozinho. Umas vezes serás tu a jogar a peça que poderá mudar a vida de outra pessoa.
A vida é um jogo. Tu já tens a cana. Aquela que te ajudará na tua vida. Basta agora perceberes que podes triunfar na vida com todos os obstáculos que te poderão aparecer. Fizeste-o com a cana quando tinhas fome. Apenas tens que aplicar esse conhecimento às restantes situações. E aí terminarás o caminho que começaste.
- E o sábio? Pensei que sabias indicar-me o caminho para o sábio. - perguntou Grey.
Suspirou, o suspiro mais longo que alguma vez Grey tinha ouvido.
- O caminho para o sábio? Encontrá-lo-ás quando souberes jogar o jogo. E aí encontrarás o sábio. E nesse dia, saberás que a tua missão foi cumprida, pois chegaste a casa.
E foi embora.
Grey ficou sozinho, pensativo. Não entendia aquela conversa. Não entendia que presença era aquela. Apenas sabia que tinha que, sozinho, aprender a jogar aquele jogo.
Grey pegou na cana de pesca e no tabuleiro de xadrez e deu um passo. Já conseguia andar. Já não estava preso.
E voltou a caminhar. Com a conversa no pensamento, com a ideia da casa como meta.
Grey ainda se encontra no caminho para a casa, ou para o sábio. Mas nesse caminho Grey já descobriu que aquele suspiro que ouvia não era mais que a sua intuição a pedir-lhe que olhasse por ele.
Grey ainda está no caminho. Quando chegar ao fim, concluiu a sua missão. E perceberá que não está sozinho, porque está em casa. Porque encontrou o sábio. O sábio é ele mesmo. A casa é o seu Eu.